Começo com guarda-chuvas e garrafas
A luz do sol foi o despertador de Erik naquela manhã, queimando amigavelmente suas pálpebras, quase sussurrando um “acorde” a cada brisa.
Com as cortinas que dormiram abertas ainda escancaradas iluminando o quarto, ele, em seu estado de completo sono e cansaço, olhou ao redor. Ao seu lado uma esbelta jovem morena repousava com metade do corpo coberto pela suave colcha de cetim, a pele nua e exposta, arrepiada pela suave brisa que agora entrava no quarto. No chão, garrafas de vinho barato jaziam vazias, misturadas a roupas que foram jogadas aos cantos em algum momento da noite anterior. Noite essa da qual ele não se lembrava, novamente.
Respirando fundo e distraindo-se com nada em especial, ele se levantou, indo em direção aos agora trapos jogados no chão, úmidos de álcool, e os vestiu silenciosamente para não acordar a mulher. Ele não sabia seu nome, nem onde se conheceram, e não ficaria para perguntar, só faria o que sempre fez: ir embora, viajar para a próxima cidade e, para não soar insensível, deixar um simplório bilhete, mas com uma mensagem indireta de “Não me procure” no fim.
Erik não era um homem de negócios, ganhava o suficiente para si próprio e vivia bem, porém, contudo e, entretanto, era um nômade, mudava-se de quinze em quinze dias, tinha toda uma carreira em sua frente com a explosão dos shows de mágica, e não poderia correr o risco de se prender a um relacionamento e pôr tudo a perder. Ter uma família então? Estava tão longe de seus planos quanto ele de sua casa. E assim continuaria, afastando-se cada vez mais, trilhando uma rota para qualquer lugar, sorrindo a qualquer resultado que viesse; ninguém mais o esperava na porta ao fim da tarde, nem o acordava com um sorriso de manhã, e sua vida havia tornado-se tão fútil superficial e vazia que nem ele mesmo acreditava no que estava fazendo consigo mesmo.
Bebedeiras após os shows e prostitutas -até moças de família em alguns casos- já faziam parte da rotina. Ele arriscava sua vida, escapava nos últimos três segundos ou fazia movimentos em três milésimos, surpreendia as pessoas, e ia embora.
“O grande show vai começar!”, Erik gritava e sorria resplandecente a todos aqueles que o encaravam da platéia, enquanto interiormente, sua alma clamava por socorro, ou apenas por mais um cigarro. Ele estava indo cada vez mais para o fundo do poço.
A porta batendo talvez tenha acordado a mulher que ainda estava na cama, ele não sabia, mas fora embora sem olhar para trás, abriu a porta do carro e deu a partida. Deixaria para mergulhar em arrependimentos e afogar mágoas depois, quando estivesse fora do alcance de olhares curiosos.
...
Já era quase noite, e Charles havia acabado de tirar a poeira dos últimos livros quando o sino da porta tocou e um sorridente homem entrou por ela.
O já velho e calvo Ewan carregava uma caixa cheia até o topo, quase se abrindo no fundo de tão pesada. Respirando pesadamente, ele colocou-a no balcão, logo tirando os lacres dos lados e puxando todos os livros que estavam lá dentro. Ele falava sem parar sobre novas edições e aumento de preços, enquanto Charles só conseguia rir da animação que surgira repentinamente quando o peso fora tirado dos braços do outro.
Ewan “adotara” Charles e sua irmã mais nova, Raven, vários anos antes, numa noite chuvosa e fria, quando os irmãos bateram á porta de sua livraria. A história contada por eles era confusa e até então o velho não conseguia entender muito bem como os dois foram parar ali, mas preferia não tocar no assunto. Os meninos tinham sete e treze anos na época, e quando Charles fez 18, recebera a casa onde Ewan morava. O mesmo passou a viver na livraria, em quartos improvisados nos fundos, para vigiar o lugar e se despedir de seus últimos anos de vida perto de seus amados livros.
“Amanhã nós resolvemos toda a organização, vá pegar sua irmã na escola.” Ewan disse sorridente e Charles comemorou internamente ao ouvir tais palavras, estava realmente exausto. Então pegou sua mochila pendurada na parede entre inúmeros mapas e partiu, fazendo o estridente sino tocar outra vez.
A chuva caía suave do lado de fora, e o menino resolveu caminhar lentamente, sentindo as gotas evaporarem-se em seu rosto e molharem sua franja. Seu irmã estudava por perto e não havia pressa, ele simplesmente andava olhando para os pôsteres e cartazes nos muros de teatros e cinemas, admirando-os.
Mais a frente, já perto da escola, um deles, especialmente, chamou sua atenção.
O fundo roxo destacava-se dos enormes rostos de atrizes famosas grudados na parede. Charles atravessou a rua e leu as informações mais de perto: Era a propaganda de um show de mágica que aconteceria naquela semana, naquele lugar, com uma suposta celebridade do “mundo do ilusionismo”. As esperanças de Charles se dissiparam.
Apesar de sempre amar mágica, era estupidamente fácil para ele descobrir como todos os truques eram feitos, o que destruía e pisoteava toda a emoção de sentar-se na platéia, o sentimento de ser uma criança novamente, vendo um objeto desaparecer inexplicavelmente. Ele pegaria alguns panfletos e esqueceria no bolso, ou veria a apresentação se não tivesse nada para fazer e voltaria para casa se perguntando como aquelas pessoas deixavam-se enganar tão fácil, era sempre assim.
Enquanto fechava o compartimento da bolsa, Charles saiu andando de cabeça abaixada, agora desviando da chuva que era mais forte. Tentou tanto se esconder da água que não notou o homem saindo do prédio, abrindo a porta em seu lado. Acabaram se esbarrando, e Charles derrubou o guarda-chuva do outro.
Ao virar-se para pedir desculpas, vislumbrou aquele em sua frente. Ele trajava um sobretudo negro, com um colete roxo listrado por baixo, o que o dava a impressão de ser ainda mais alto. E seu cabelo estava bagunçado, mas mesmo na luz fraca da tarde foi possível ver as madeixas loiras por baixo da cartola. Era uma figura excêntrica, um mágico.
Charles ficou hipnotizado pelos broches no peito do homem, os botões detalhados da roupa e principalmente pela maquiagem negra ao redor dos olhos verdes do mesmo, e ao pegar o guarda-chuva, que tinha uma ponta tão afiada que era capaz de furar que se colocasse em seu caminho, o encarou por longos segundos, imaginando para que alguém usaria aquilo. Foi quando o dono do objeto pigarreou, quebrando o silêncio da situação.
Acordando de seu devaneio, Charles devolveu o guarda-chuva, se despediu com um aceno rápido que expressava um claro “me desculpe” e, sem encarar o homem na sua frente, correu para longe, cobrindo a cabeça com a pasta marrom que levava.
...
Erik estava saindo de seu hotel numa tarde chuvosa quando um menino, talvez 5 anos mais novo que ele, esbarrou em si e jogou seu guarda-chuva no chão.
Ele já ia xingar o rapaz quando notou que o mesmo agora o encarava, provavelmente curioso sobre o risco negro embaixo de seus olhos. E então, pouco depois, o rapaz se abaixou e pegou o objeto no chão, quase devorando-o com os olhos, provavelmente se perguntando por que a ponta parecia mais uma faca.
Erik continuou observando-o. Ele tinha um cabelo castanho com uma franja que cobria toda a testa, jogada de lado, e seus olhos eram ridiculamente claros, mesmo que não houvesse luz alguma refletindo neles. O único pensamento do homem naquele momento foi que nunca havia tido uma mulher com um rosto tão delicado, nem com íris tão vibrantes.
No mesmo momento em que pensou, Erik se surpreendeu com sua própria imaginação e acabou pigarreando, o que talvez tenha soado rude para o menino, que o entregou o objeto e saiu correndo.
Ao que tudo indicava, pelo panfleto que caiu da mochila do rapaz quando este foi embora, eles se veriam novamente na mesma semana, em dois dias exatamente.
E a mente perversa de Erik Lensherr mal podia esperar por isso.
E a mente perversa de Erik Lensherr mal podia esperar por isso.
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