26.11.14

O feliz triste final.
Meses haviam se passado desde que ele fora embora da cidade. Depois de literalmente abandonar Charles e quase ter uma recaída (dificilmente se recuperando), Erik finalmente voltava aquele lugar, que aparentemente não mudara em nada. A praça continuava lotada, os carros ainda eram mal estacionados e o cheiro de cigarro e a fumaça ainda tomava conta dos bares.

Lar doce lar.

Tirando um papel dobrado ao meio de dentro do casaco, ele conferiu uma última vez o endereço do local para onde iria. Era um estabelecimento velho e acabado, todos reconheciam isso, mas sua missão lá não se deixaria abalar por poeira no chão, nem por nada no mundo; Erik havia decidido voltar, ele estava pronto para qualquer coisa que se colocasse em seu caminho, no caminho dele e de Charles.

No caminho ele inspirava fundo o ar frio, porém agradável, do fim de inverno, e observava tudo com admiração, tentando recuperar as informações que perdera sobre aquele lugar. Ele já estava chegando e a tensão e o nervosismo o fazia suar frio.
Curvando algumas ruas a pé, a velha placa de madeira entalhada surgiu em sua visão, trazendo um sorriso a seus lábios. Definitivamente, não tinha volta, ele teria que fazer aquilo.

E então ele respirou o ar puro mais uma vez, e abriu a porta.

O teatro estava lotado, e em cima do palco uma figura solitária detia toda a atenção do público, vestindo o tradicional traje composto por cartola e colete listrado, manuseando algo colorido em suas mãos. Erik o observou por longos minutos, matou a saudade com os olhos, em pé nos fundos do local, até que um atendente chamou sua atenção, pedindo o ingresso.
Entregando o ticket ao recepcionista, ele se dirigiu a seu lugar, bem perto do palco, na segunda fileira do meio.

- O mais próximo possível. -sussurrou em uníssono com aquele que agora era o foco das atenções.

...

As luzes se apagaram e as longas cortinas de seda vermelha finalmente se fecharam, deixando o palco completamente escuro. Charles apoiou-se na pequena mesa de madeira e respirou fundo, massageando as têmporas e mergulhando em pensamentos. Erik havia acabado de participar do seu show, isso ou ele estava enlouquecendo e vendo rostos por aí. A frase “Não pode ser ele” se repetia incessantemente em sua cabeça. Ele estava tentando se convencer que se enganara, que de tanto driblar as propriedades mentais alheias, sua própria sanidade havia sido prejudicada.


Vários assistentes de palco se agitavam ao seu redor, guardando seus trajes e removendo a maquiagem em camarins improvisados. As luzes eram removidas de suas hastes no teto e as maquinas de fumaça desligadas, durante tudo isso, um pequeno rádio antigo em cima da mesa tocava uma música animada de forma quase inaudível, e o som não era notado pelo rapaz, suava frio e encarava o chão, pensando.

Vários minutos depois, assim que a música parou e as últimas pessoas se despediram e fecharam a porta dos fundos, Charles finalmente saiu de seu transe e levantou os olhos para o lugar. O teatro estava vazio e as cortinas já haviam sido abertas novamente; as luzes, ainda acesas e criando sombras pelas paredes atribuiriam um ar macabro a tudo se a mente dele não estivesse focada em outra coisa: Erik.

Ele olhou para o fundo do lugar, uma mínima chama de esperança queimando dentro de si, mas notou que nas últimas cadeiras não havia ninguém, nem na porta de entrada, que dava abertura para um longo salão iluminado, onde seria possível ver uma pessoa claramente. Nada,nenhum som, ninguém além dele.

Um vento gelado irrompeu por essa entrada, e pareceu trazer um sopro de consciência a ele. Charles desceu da mesa onde estava sentado para pegar seu casaco e arrumar sua bolsa, conclui que estava delirando, afinal de contas. A realidade no momento era simples e ele devia encará-la: Erik jamais voltaria e Raven chegaria em uma hora, o que dava a ele tempo para organizar tudo no mínimo quatro vezes e, quem sabe, depois, beber no quarto dos fundos para esquecer o outro fato.

Ele virou de costas para as poltronas, ajoelhou-se no chão e abriu sua mochila de sempre, colocando os menores objetos nela. Quando, ainda concentrado em fechar a bolsa, ele esticou sua mão para a mesa onde estava até agora o rádio, seus dedos tocaram o vazio, e em seguida um som de estática cortou o silêncio.

Seus olhos se direcionaram relutantes ao ruído e ele pôde vislumbrar uma alta figura loira acima de si girando a pequena alavanca ao lado do objeto, mudando as estações de música.

O choque do momento em que vira aquele homem pela primeira vez no dia voltou, assim como o frio na barriga e o aperto no peito. Charles levantou-se lentamente, ficando de frente para ele, com o punho cerrado. Enfrentando bravamente o nó em sua garganta, ele conseguiu pronunciar poucas palavras.

-Não funciona mais. -Sua voz saíra firme e séria, escondendo o desejo dele de socar o rosto daquele em sua frente e logo depois abraçá-lo o mais forte possível. Ele agora era um adulto, devia agir como tal e superar o passado.

-Eu sei. -Erik respondeu quase que em um sussurro, e estendeu a mão que segurava o rádio para Charles, que o pegou e encarou por alguns segundos até puxar a alça da bolsa, colocando-a no ombro e guardando o aparelho no bolso da frente.

E então o silêncio voltou. Os dois ficaram ali, encarando o chão. Erik se jurava preparado para aquele momento, mas agora sua mente estava vazia, ele não sabia o que dizer. Charles esforçava-se ao máximo para engolir o nó que só aumentava em sua garganta, e cravava cada vez mais as unhas curtas na palma da mão.
O loiro levantou os olhos e ficou observando aquele em sua frente, vendo agora mais de perto seus tão amados dois cristais azuis, que então o encaravam de volta.

Um ano atrás, naquele mesmo palco, eles estavam dançando uma música feliz num rádio que ainda funcionava, com uma química palpável no ar. Agora, todos os sentimentos restantes eram arrependimento, saudade e alegria encoberta por tristeza.

Aquilo não deveria terminar assim.

Charles arrumou a alça de couro em seu braço e girou nos calcanhares, andando lentamente até a saída, ainda encarando o piso de madeira escura. "Vá se foder", ele pensou em dizer e então sair pelos fundos, trancando a porta, mas sabia que não era sincero. A vontade dele naquele momento era aninhar-se novamente nos braços de Erik e dizer que estava tudo bem. Ele era um idiota por se deixar abandonar e depois correr atrás daquele que pisoteou em seu coração, sim, ele era. Mas o amor é a maior idiotice de todos os tempos, e o fez parar no meio do caminho.
Em seu interior uma batalha era travada, como duas vozes sussurrando em seus ouvidos coisas opostas: Uma mandando-o ir embora e superar aquilo, a outra dizendo que ele devia perdoar o homem atrás de si. Ele não sabia qual escutar.

-Quando sair, por favor, apague as luzes. -Lá estava Charles Xavier, jogando as cartas na mesa, ouvindo o lado de si que parecia mais errado.

Ele se dirigiu á porta, e quando tocou a maçaneta, ouviu a voz de Erik soar pelo teatro vazio.

-Me desculpe. -Os olhos verdes lacrimejavam e ele encarava tudo, menos aquele em sua frente, que parou com a mão no objeto de metal, ouvindo-o. -Sinceramente, me desculpe, por favor, por tudo. Eu sou um idiota, sempre fui, e pensei que sua vida melhoraria sem mim. Sempre me vi como um peso morto pra você, Charles. Você, o cara inteligente da história, fazia faculdade, trabalhava e cuidava da sua irmã, eu era só um mágico falido, entrando em depressão. Eu estava chegando no fundo do poço e tive medo de te arrastar 'pra lá comigo. Te imploro, tente entender. Eu convivi dias com você, um mês e meio, dois, não importa, você fez o tempo parar para mim e eu joguei isso no lixo por puro egoísmo, só notei o quanto você valia para mim quando o perdi. Eu te...

-Não.Fale.-A bolsa de Charles caíra no chão, interrompendo Erik com o estrondo. 
Ele se virou lentamente para o outro, agora fazendo com que ficassem de frente, e se aproximou lentamente. - Você é um completo idiota.

Eles estavam a dois, talvez três metros um do outro. O mais velho, completamente estático com as últimas palavras que ouviu, encarava Charles incrédulo. Esse que balançou a cabeça, sorrindo ironicamente, e completou, aproximando-se mais.

-Um completo idiota...

E quando menos esperava, Erik sentiu o punho fechado do outro contra sua bochecha, o impacto levando-o a apoiar-se na mesa. Ele levou a mão a área, que ficaria inchada depois, e quando virou-se para Charles novamente, viu a mão direita vindo novamente em sua direção bem a tempo de segurá-la, antes que o acertasse novamente e deixasse mais marcas roxas.

Agora com a proximidade e a visão recuperada, Erik pôde ver que ele chorava. 

Charles abriu e fechou a mão sob o aperto do outro, e levou-a ao peito do mesmo. Com as lágrimas já rolando sem parar por sua face, ele encaixou seu rosto na curva do pescoço de Erik, relembrando o cheiro do perfume adocicado.

-Seu..Idiota. -O nó em sua garganta se desfizera, e suas mãos, agora livres, rodearam o corpo do outro, abraçando-o o mais forte que podia, o que foi correspondido em mesma proporção. Eles ficaram ali, colados um ao outro, matando a saudade do cheiro, do toque, do sabor que conheciam e amavam. A química só não bastava, agora havia amor, sempre houve.

-Eu te amo.

E dessa vez Charles permitiu que ele falasse, respondendo um "Eu também" abafado, e pressionando seus corpos cada vez mais contra a mesa.

A alguns metros dali, uma Raven sorridente observava a cena, escondida atrás da porta. Seu irmão voltaria a sorrir como antes, ela tinha certeza, a razão da felicidade dele estava em seus braços novamente. Ela pegou a bolsa do irmão silenciosamente, arrastando-a para fora e indo para casa. Não interromperia o que estava acontecendo.


25.11.14

Penúltima infelicidade.
O inverno, que já anunciava sua chegada há dias, finalmente se desmanchara em flocos no chão. A neve cobrindo os telhados dava aquele bairro um ar confortável e aconchegante.
Naquela manhã, ao se levantar da cama e dar as costas a quem estava ao seu lado, Erik sentiu, pela primeira vez, um aperto no peito, um frio no estômago. O sol agora irrompia fraco entre as cortinas, seus raios indo diretamente na pele alva de Charles, iluminando-a e quase sendo refletidos. Os olhos verdes não desgrudavam do peito do menino, que se movia junto com a respiração pesada, dificultada pelo ar gélido.

Erik colocou sua roupa, que jazia jogada na cômoda, sem nenhuma pressa. Ele devia ir embora, mas uma força invisível forçava seu corpo contra o colchão, implorando que ele ficasse. Ele aproximou-se novamente de Charles e o cobriu com as cobertas que ficaram ao pé da cama; três pesados emaranhados de tecido, pelos e espuma.

E então fechou a porta do quarto atrás de si fazendo o máximo possível de silêncio, verdadeiramente.

Dirigindo-se a cozinha, ele pegou uma xícara no armário e preencheu-a com o café quente da garrafa, bebendo lentamente. Apoiou-se no balcão e observou tudo ao seu redor: Os quadros na parede e a lareira que ainda tinha brasa quente, e enquanto rodava os olhos de um canto a outro, a iluminação fraca da manhã brilhou em um objeto pequeno acima de uma das prateleiras recheadas com livros. Erik deixou o copo, agora vazio, no balcão, e dirigiu-se até a fonte do brilho.

De perto, as esmeraldas verdes no broche eram notáveis e chamativas, e ornamentavam toda a extensão do objeto em formato de libélula, de bordas douradas com pontas de ferrugem. Charles havia guardado aquilo, não como se realmente acreditasse no poder místico de algumas pedras e metais, mas como se “acreditasse na presença de Erik toda vez que usava o acessório”; fora o que disse logo depois da apresentação do tranque d’água, afinal, e agora o de olhos verdes sabia que era a mais pura verdade.

Olhos esses que já lacrimejavam.

Erik apertou a mão ao redor do broche e apertou-o contra o peito. Ele não devia ir embora.
Ao ouvir passos na escada ele rapidamente o guardou no bolso interno do casaco que usava e virou-se imediatamente, Charles estava encostado no batente da porta que dava fim ao corredor, encarando-o com a mesma expressão de dias antes, um misto de incredulidade e tristeza. Ele abriu a boca algumas vezes antes de conseguir pronunciar as palavras.

-Você vai mesmo, não é? –Sua voz saíra rasteira, baixa e arrastada. Isso foi como uma facada no coração de Erik. – Eu entendo, é a sua vida. – Charles completou cruzando os braços e balançando os ombros, ele não podia fazer nada, além disso.

-Charles, eu... – Erik procurava palavras em todos os cantos de sua mente, mas era como se todo o seu raciocínio tivesse sido levado embora com o vento frio da manhã.

O mais novo ali trocou o peso das pernas e encarou o outro, que parecia capaz de afundar no chão, de tão profundamente que o encarava. O silêncio foi inevitável, longos minutos de olhares desviados e uma torturante espera para ambos, que realmente esperavam que alguém se pronunciasse.

Por fim, em parte já cansado daquilo, Charles dirigiu-se a porta, abrindo-a e apontando a saída educadamente, encarando o outro com o canto dos olhos.

-Eu não te peço que fique, por mim está tudo bem.

Erik caminhou lentamente até a saída, e se pôs um palmo do lado de fora, logo virando novamente de frente para Charles, encarando-o de perto, se deixando hipnotizar pelas íris azuis assim como fizera quando se esbarraram na primeira vez. Mas agora elas não brilhavam. Começavam a ficar rodeadas por uma aura vermelha, e lágrimas já escorriam do rosto do rapaz, que mesmo visivelmente abalado, não mudava a face séria, a expressão indecifrável.

Num último lampejo de esperança, de uma despedida menos dolorosa, Erik diminuiu ainda mais o espaço entre os corpos, deixando sua mão direita segurar a cintura de Charles. A outra procurava a os dedos do rapaz, entrelaçando neles quando os encontrou. Era como se eles fossem dançar novamente naquele teatro vazio, mas não havia a mesma felicidade de antes.
Suas respirações se uniram e os lábios gelados de Erik logo tocaram cuidadosamente os de Charles, quase timidamente, se não fosse pelo fogo que claramente rodeava ambos. Alguns segundos depois, já haviam mordidas suaves e bocas rosadas pela pressão que sofriam. E eles ficaram assim por um tempo incontável.

Mesmo após o fim do beijo eles continuaram ali, unidos, entrelaçados, uma despedida silenciosa vagando entre suas mentes.

-Você tem que ir. –Charles sussurrou, ainda com a cabeça apoiada no ombro do outro.
E então a mão gelada de Erik tocou seu rosto, acariciando-o, causando agradáveis arrepios no caminho trilhado por seus dedos. A distância aumentou gradativamente, até que só restassem dois braços dobrados. Eles não haviam soltado as mãos, não era tão fácil.
Erik encarava o chão novamente, e então voltava o olhar para as gélidas íris azul-claro de Charles.

-Charles, eu t... –Seus lábios foram encobertos pelos do outro, que selou um beijo rápido, logo soltando suas mãos e voltando para trás da porta.

-Por favor, não... Não diga isso. –E a madeira antiga e envernizada cobriu a visão do mais velho. Charles fechara a porta já chorando, dessa vez sem disfarçar o que sentia com uma máscara de seriedade.

Erik encarou o corredor por um longo tempo, estático, até reagir novamente.
...
Charles apoiou-se completamente na porta, deixando o peso de seu corpo levá-lo de encontro ao chão. Ele se sentia uma criança novamente, sentia-se como se sentira na morte de Ewan, mas agora não tinha ninguém para consolá-lo. Tapando sua boca para que o choro fosse contido e não acordasse Raven, ele permaneceu lá por horas, chorando toda sua dor, dissipando os maus sentimentos com lágrimas. Não era como se ele tivesse a opção de correr atrás de Erik nesse momento.


DRAGONFLY


Começo com guarda-chuvas e garrafas
A luz do sol foi o despertador de Erik naquela manhã, queimando amigavelmente suas pálpebras, quase sussurrando um “acorde” a cada brisa.

Com as cortinas que dormiram abertas ainda escancaradas iluminando o quarto, ele, em seu estado de completo sono e cansaço, olhou ao redor. Ao seu lado uma esbelta jovem morena repousava com metade do corpo coberto pela suave colcha de cetim, a pele nua e exposta, arrepiada pela suave brisa que agora entrava no quarto. No chão, garrafas de vinho barato jaziam vazias, misturadas a roupas que foram jogadas aos cantos em algum momento da noite anterior. Noite essa da qual ele não se lembrava, novamente.

Respirando fundo e distraindo-se com nada em especial, ele se levantou, indo em direção aos agora trapos jogados no chão, úmidos de álcool, e os vestiu silenciosamente para não acordar a mulher. Ele não sabia seu nome, nem onde se conheceram, e não ficaria para perguntar, só faria o que sempre fez: ir embora, viajar para a próxima cidade e, para não soar insensível, deixar um simplório bilhete, mas com uma mensagem indireta de “Não me procure” no fim.

Erik não era um homem de negócios, ganhava o suficiente para si próprio e vivia bem, porém, contudo e, entretanto, era um nômade, mudava-se de quinze em quinze dias, tinha toda uma carreira em sua frente com a explosão dos shows de mágica, e não poderia correr o risco de se prender a um relacionamento e pôr tudo a perder. Ter uma família então? Estava tão longe de seus planos quanto ele de sua casa. E assim continuaria, afastando-se cada vez mais, trilhando uma rota para qualquer lugar, sorrindo a qualquer resultado que viesse; ninguém mais o esperava na porta ao fim da tarde, nem o acordava com um sorriso de manhã, e sua vida havia tornado-se tão fútil superficial e vazia que nem ele mesmo acreditava no que estava fazendo consigo mesmo.

Bebedeiras após os shows e prostitutas -até moças de família em alguns casos- já faziam parte da rotina. Ele arriscava sua vida, escapava nos últimos três segundos ou fazia movimentos em três milésimos, surpreendia as pessoas, e ia embora.

 “O grande show vai começar!”, 
Erik gritava e sorria resplandecente a todos aqueles que o encaravam da platéia, enquanto interiormente, sua alma clamava por socorro, ou apenas por mais um cigarro. Ele estava indo cada vez mais para o fundo do poço.

A porta batendo talvez tenha acordado a mulher que ainda estava na cama, ele não sabia, mas fora embora sem olhar para trás, abriu a porta do carro e deu a partida. Deixaria para mergulhar em arrependimentos e afogar mágoas depois, quando estivesse fora do alcance de olhares curiosos.
...
Já era quase noite, e Charles havia acabado de tirar a poeira dos últimos livros quando o sino da porta tocou e um sorridente homem entrou por ela.

O já velho e calvo Ewan carregava uma caixa cheia até o topo, quase se abrindo no fundo de tão pesada. Respirando pesadamente, ele colocou-a no balcão, logo tirando os lacres dos lados e puxando todos os livros que estavam lá dentro. Ele falava sem parar sobre novas edições e aumento de preços, enquanto Charles só conseguia rir da animação que surgira repentinamente quando o peso fora tirado dos braços do outro.

Ewan “adotara” Charles e sua irmã mais nova, Raven, vários anos antes, numa noite chuvosa e fria, quando os irmãos bateram á porta de sua livraria. A história contada por eles era confusa e até então o velho não conseguia entender muito bem como os dois foram parar ali, mas preferia não tocar no assunto. Os meninos tinham sete e treze anos na época, e quando Charles fez 18, recebera a casa onde Ewan morava. O mesmo passou a viver na livraria, em quartos improvisados nos fundos, para vigiar o lugar e se despedir de seus últimos anos de vida perto de seus amados livros.

“Amanhã nós resolvemos toda a organização, vá pegar sua irmã na escola.” Ewan disse sorridente e Charles comemorou internamente ao ouvir tais palavras, estava realmente exausto. Então pegou sua mochila pendurada na parede entre inúmeros mapas e partiu, fazendo o estridente sino tocar outra vez.

A chuva caía suave do lado de fora, e o menino resolveu caminhar lentamente, sentindo as gotas evaporarem-se em seu rosto e molharem sua franja. Seu irmã estudava por perto e não havia pressa, ele simplesmente andava olhando para os pôsteres e cartazes nos muros de teatros e cinemas, admirando-os.

Mais a frente, já perto da escola, um deles, especialmente, chamou sua atenção.

O fundo roxo destacava-se dos enormes rostos de atrizes famosas grudados na parede. Charles atravessou a rua e leu as informações mais de perto: Era a propaganda de um show de mágica que aconteceria naquela semana, naquele lugar, com uma suposta celebridade do “mundo do ilusionismo”. As esperanças de Charles se dissiparam. 

Apesar de sempre amar mágica, era estupidamente fácil para ele descobrir como todos os truques eram feitos, o que destruía e pisoteava toda a emoção de sentar-se na platéia, o sentimento de ser uma criança novamente, vendo um objeto desaparecer inexplicavelmente. Ele pegaria alguns panfletos e esqueceria no bolso, ou veria a apresentação se não tivesse nada para fazer e voltaria para casa se perguntando como aquelas pessoas deixavam-se enganar tão fácil, era sempre assim.

Enquanto fechava o compartimento da bolsa, Charles saiu andando de cabeça abaixada, agora desviando da chuva que era mais forte.  Tentou tanto se esconder da água que não notou o homem saindo do prédio, abrindo a porta em seu lado. Acabaram se esbarrando, e Charles derrubou o guarda-chuva do outro.

Ao virar-se para pedir desculpas, vislumbrou aquele em sua frente. Ele trajava um sobretudo negro, com um colete roxo listrado por baixo, o que o dava a impressão de ser ainda mais alto. E seu cabelo estava bagunçado, mas mesmo na luz fraca da tarde foi possível ver as madeixas loiras por baixo da cartola. Era uma figura excêntrica, um mágico.

Charles ficou hipnotizado pelos broches no peito do homem, os botões detalhados da roupa e principalmente pela maquiagem negra ao redor dos olhos verdes do mesmo, e ao pegar o guarda-chuva, que tinha uma ponta tão afiada que era capaz de furar que se colocasse em seu caminho, o encarou por longos segundos, imaginando para que alguém usaria aquilo. Foi quando o dono do objeto pigarreou, quebrando o silêncio da situação.

Acordando de seu devaneio, 
Charles devolveu o guarda-chuva, se despediu com um aceno rápido que expressava um claro “me desculpe” e, sem encarar o homem na sua frente, correu para longe, cobrindo a cabeça com a pasta marrom que levava.
...
Erik estava saindo de seu hotel numa tarde chuvosa quando um menino, talvez 5 anos mais novo que ele, esbarrou em si e jogou seu guarda-chuva no chão.

Ele já ia xingar o rapaz quando notou que o mesmo agora o encarava, provavelmente curioso sobre o risco negro embaixo de seus olhos. E então, pouco depois, o rapaz se abaixou e pegou o objeto no chão, quase devorando-o com os olhos, provavelmente se perguntando por que a ponta parecia mais uma faca.

Erik continuou observando-o. Ele tinha um cabelo castanho com uma franja que cobria toda a testa, jogada de lado, e seus olhos eram ridiculamente claros, mesmo que não houvesse luz alguma refletindo neles. O único pensamento do homem naquele momento foi que nunca havia tido uma mulher com um rosto tão delicado, nem com íris tão vibrantes.

No mesmo momento em que pensou, 
Erik se surpreendeu com sua própria imaginação e acabou pigarreando, o que talvez tenha soado rude para o menino, que o entregou o objeto e saiu correndo.

Ao que tudo indicava, pelo panfleto que caiu da mochila do rapaz quando este foi embora, eles se veriam novamente na mesma semana, em dois dias exatamente.
E a mente perversa de 
Erik Lensherr mal podia esperar por isso.

4.3.14

One

E minha rotinha seguia. Sozinha na rua, no escuro,caminhando o mais devagar que podia em direção ao pequeno prédio verde-musgo onde morava.
Eu havia me mudado fazia 1 ano. Quando cheguei, a "quase pensão" expremida entre duas construções antigas pareceu perfeita, aconchegante e escondida numa rua composta por moradias, cafeterias e lanchonetes.Meus vizinhos então?Simpáticas senhoras e homens viciados em futebol. Um deles inclusive, tinha como passa-tempo favorito me perturbar, era um inglês de olhos escuros e cabelos loiros, vivia bêbado e parecia cultivar uma paixão incurável por mim.Meu apartamento era minúsculo, com espaço apenas para uma cama e todo o resto. Era mais do que eu precisava, sem dúvidas...

Abri a pesada porta de ferro que rangeu exageradamente, e subi as escadas encarando a pequena peça de metal que rodava entre meus dedos. Era um detalhe idiota, mas cômico; as chaves tinham inúmeras curvas, e cada uma era feita especialmente para seu dono.A minha, tinha um circulo que se destorcia, formando uma letra A enorme no meio.

No segundo andar, em frente ao meu quarto provisório, jogada na porta, havia mais uma "declaração de amor" de um estranho qualquer que vivia pregando peças nos moradores. Era simples, quando a iludida donzela abrisse a bela e pesada (detalhe que ninguém percebia) carta cor de rosa, BANG! Um mecanismo feito com molas e uma bateria daqueles bonecos de 1,99 jogava uma rolha no meio da testa da pobre coitada.Sabe-se lá como ele ou ela fazia aquilo funcionar de forma tão mortal, mas sempre que via do algo tipo só podia imaginar um gênio incompreendido usando sua inteligência de forma errada.

Entrei no apertado e claro espaço que era obrigada a chamar de lar logo depois de rasgar o papel ao meio e jogar o "motor" no lixo. Meu gato Caroll estava deitado em um travesseiro qualquer jogado no chão, para variar. Era um macho, por mais que o nome engane, um belo persa cinza escuro. O peguei no colo e fui em direção ao armário, logo pegando uma xícara de café da velha cafeteira de plástico e jogando o pesado casaco preto em cima da cama improvisada.Era inverno, eu jamais reclamaria, sempre foi minha estação favorita, desde pequena.

Sentei no macio colchão posto de qualquer forma em cima de uma mesa, refletindo sobre mais um dia tedioso que havia se passado. Trabalho, almoço, trabalho, café para não dormir, mais trabalho.
Comecei o que meu patrão chamava de "estágio" numa livraria perto do centro quando me mudei para Florença.O lugar era bem movimentado e o caminho até lá era longo, mas por minha sorte haviam ruas que serviam de atalho.
Isso sem contar que, em um dos meus horários de descanso, recebi a notícia de que mais uma funcionária estava noiva.Todas elas estavam, na verdade, todas menos eu. Jovens entre 20 e 26 anos já prometidas a alguém pro resto da vida, uma grande tolice.
Claro que não digo prometidas como um pesar, como se eu mesma já tivesse tido muitos namorados, muito pelo contrário.Relacionamentos são para tolos, pura perca de tempo, apenas isso. E essas conclusões não foram tiradas de inúmeras decepções amorosas, mas sim de nenhuma, absolutamente nenhuma. 
Isso mesmo, apresento-lhes uma jovem de 23 anos, que nunca sequer beijou um cara. O problema não era eles, e sim eu, por mais que isso soe clichê.
Dificuldade para gostar de alguém, para fazer amigos,ah...Ela sempre esteve presente.

Acordei dos meus devaneios antes que tivesse outra recaída em menos de dois meses, e mesmo sem ter notado, já havia bebido todo o café. Me levantei conformada com a falta do que fazer e fui tomar banho no cubículo com uma banheira. A água estava simplesmente escaldante, perfeita.
Quando acabei, coloquei um moletom qualquer jogado no fundo de uma caixa e apaguei as luzes. Virei para todos os lados, tentei todas as posições, a insônia se fez presente mais uma noite.
Peguei um livro dentro da minha mochila, um suspense qualquer, e li, li até meu olhos clamarem por descanso. No limiar da minha energia acabei cedendo, então o coloquei em cima de uma cômoda, me cobrindo com um pesado cobertor de patchwork que ganhei de uma amiga muitos anos antes.
Colei as pálpebras na esperança de ter uma noite de sono tranquilo, mas o que pareceu ser menos de um minuto depois, a tela do meu celular acendeu e uma doce sinfonia tomou conta do quarto.
Já eram 6 horas, eu tinha que levantar.