Penúltima infelicidade.
O inverno, que
já anunciava sua chegada há dias, finalmente se desmanchara em flocos no chão.
A neve cobrindo os telhados dava aquele bairro um ar confortável e
aconchegante.
Naquela manhã,
ao se levantar da cama e dar as costas a quem estava ao seu lado, Erik sentiu, pela primeira vez, um aperto no peito, um frio no estômago. O sol agora
irrompia fraco entre as cortinas, seus raios indo diretamente na pele alva de
Charles, iluminando-a e quase sendo refletidos. Os olhos verdes não desgrudavam
do peito do menino, que se movia junto com a respiração pesada, dificultada
pelo ar gélido.
Erik colocou sua
roupa, que jazia jogada na cômoda, sem nenhuma pressa. Ele devia ir embora, mas
uma força invisível forçava seu corpo contra o colchão, implorando que ele
ficasse. Ele aproximou-se novamente de Charles e o cobriu com as cobertas que
ficaram ao pé da cama; três pesados emaranhados de tecido, pelos e espuma.
E então fechou a
porta do quarto atrás de si fazendo o máximo possível de silêncio,
verdadeiramente.
Dirigindo-se a
cozinha, ele pegou uma xícara no armário e preencheu-a com o café quente da
garrafa, bebendo lentamente. Apoiou-se no balcão e observou tudo ao seu redor:
Os quadros na parede e a lareira que ainda tinha brasa quente, e enquanto
rodava os olhos de um canto a outro, a iluminação fraca da manhã brilhou em um
objeto pequeno acima de uma das prateleiras recheadas com livros. Erik deixou o
copo, agora vazio, no balcão, e dirigiu-se até a fonte do brilho.
De perto, as
esmeraldas verdes no broche eram notáveis e chamativas, e ornamentavam toda a
extensão do objeto em formato de libélula, de bordas douradas com pontas de
ferrugem. Charles havia guardado aquilo, não como se realmente acreditasse no
poder místico de algumas pedras e metais, mas como se “acreditasse na presença
de Erik toda vez que usava o acessório”; fora o que disse logo depois da
apresentação do tranque d’água, afinal, e agora o de olhos verdes sabia que era
a mais pura verdade.
Olhos esses que
já lacrimejavam.
Erik apertou a mão ao redor do broche e apertou-o contra o peito. Ele não devia ir embora.
Ao ouvir passos
na escada ele rapidamente o guardou no bolso interno do casaco que usava e
virou-se imediatamente, Charles estava encostado no batente da porta que dava
fim ao corredor, encarando-o com a mesma expressão de dias antes, um misto de
incredulidade e tristeza. Ele abriu a boca algumas vezes antes de conseguir
pronunciar as palavras.
-Você vai mesmo,
não é? –Sua voz saíra rasteira, baixa e arrastada. Isso foi como uma facada no
coração de Erik. – Eu entendo, é a sua vida. – Charles completou cruzando os
braços e balançando os ombros, ele não podia fazer nada, além disso.
-Charles, eu... – Erik procurava palavras em todos os cantos de sua mente, mas era como se todo o
seu raciocínio tivesse sido levado embora com o vento frio da manhã.
O mais novo ali trocou
o peso das pernas e encarou o outro, que parecia capaz de afundar no chão, de
tão profundamente que o encarava. O silêncio foi inevitável, longos minutos de
olhares desviados e uma torturante espera para ambos, que realmente esperavam
que alguém se pronunciasse.
Por fim, em
parte já cansado daquilo, Charles dirigiu-se a porta, abrindo-a e apontando a
saída educadamente, encarando o outro com o canto dos olhos.
-Eu não te peço
que fique, por mim está tudo bem.
Erik caminhou
lentamente até a saída, e se pôs um palmo do lado de fora, logo virando
novamente de frente para Charles, encarando-o de perto, se deixando hipnotizar
pelas íris azuis assim como fizera quando se esbarraram na primeira vez. Mas
agora elas não brilhavam. Começavam a ficar rodeadas por uma aura vermelha, e
lágrimas já escorriam do rosto do rapaz, que mesmo visivelmente abalado, não
mudava a face séria, a expressão indecifrável.
Num último
lampejo de esperança, de uma despedida menos dolorosa, Erik diminuiu ainda mais o espaço entre os corpos, deixando sua mão direita segurar a cintura de Charles.
A outra procurava a os dedos do rapaz, entrelaçando neles quando os encontrou.
Era como se eles fossem dançar novamente naquele teatro vazio, mas não havia a
mesma felicidade de antes.
Suas respirações
se uniram e os lábios gelados de Erik logo tocaram cuidadosamente os de Charles, quase timidamente, se não fosse pelo fogo que claramente rodeava ambos. Alguns segundos
depois, já haviam mordidas suaves e bocas rosadas pela pressão que sofriam. E
eles ficaram assim por um tempo incontável.
Mesmo após o fim
do beijo eles continuaram ali, unidos, entrelaçados, uma despedida silenciosa
vagando entre suas mentes.
-Você tem que
ir. –Charles sussurrou, ainda com a cabeça apoiada no ombro do outro.
E então a mão
gelada de Erik tocou seu rosto, acariciando-o, causando agradáveis arrepios no caminho trilhado por seus dedos. A distância aumentou gradativamente, até que
só restassem dois braços dobrados. Eles não haviam soltado as mãos, não era tão
fácil.
Erik encarava o
chão novamente, e então voltava o olhar para as gélidas íris azul-claro de Charles.
-Charles, eu t...
–Seus lábios foram encobertos pelos do outro, que selou um beijo rápido, logo
soltando suas mãos e voltando para trás da porta.
-Por favor, não...
Não diga isso. –E a madeira antiga e envernizada cobriu a visão do mais velho. Charles fechara a porta já chorando, dessa vez sem disfarçar o que sentia com
uma máscara de seriedade.
Erik encarou o
corredor por um longo tempo, estático, até reagir novamente.
...
Charles apoiou-se
completamente na porta, deixando o peso de seu corpo levá-lo de encontro ao
chão. Ele se sentia uma criança novamente, sentia-se como se sentira na morte
de Ewan, mas agora não tinha ninguém para consolá-lo. Tapando sua boca para que
o choro fosse contido e não acordasse Raven, ele permaneceu lá por horas,
chorando toda sua dor, dissipando os maus sentimentos com lágrimas. Não era
como se ele tivesse a opção de correr atrás de Erik nesse momento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário